segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

SOBRE O MILAGRE DA MORTE

   Era um dia como qualquer outro, eu andava pela rua quando avistei um caminhão ao longe, vindo no meu sentido. Eu paro e penso "e se ele me atropelasse? E se eu morresse aqui? Agora?". De repente eu percebo que de fato eu a desejo, a morte, desejo seu beijo frio de uma forma que nunca desejei o beijo ardente de nenhuma de minhas amantes. Me pego sentindo um desejo quase involuntário de ir em direção à pista, o caminhão já está se aproximando. Eu fingiria que tropecei e morreria sem muita dor, ou pelo menor sem senti-la por muito tempo, ninguém precisaria saber que foi suicídio.

   E meu único arrependimento seria não ter deixado uma carta ou um aviso, ninguém teria seus últimos momentos comigo sabendo que foram últimos. O que será que diriam? O que será que fariam? Você é outra pessoa quando morre, mais amada. Esquecida. Quando se está pra morrer as pessoas te reconhecem, te dão valor. A morte é mesmo um milagre tão belo quanto a vida.

   Quando menos me dou conta eu já tropecei e o tempo começa a desacelerar, tudo caminha devagar, quase parando. Vejo meu corpo indo de encontro ao asfalto enquanto o caminhão vem de encontro ao meu corpo. O motorista buzina e tenta jogar o caminhão pro lado oposto para evitar o acidente, mas não havia nada que ele podia fazer, não foi acidente algum. Eu me sinto mal por ter dado aquele fardo para o motorista, ele iria viver achando que tirou uma vida. Eu deveria ter pensado nisso. Estou morto e mortos não lamentam.

   A minha vida passa como um flash na minha mente e vejo que não havia nada para se ver, todos os caminhos levariam a isso em algum ponto. Penso que se contratassem um bom diretor, minha vida até daria um bom filme. Penso em quem viria pro meu enterro, penso se teria pessoas que eu jamais esperaria. Imagino se meu cachorro uivaria seus lamentos no momento da minha morte. Penso em quanto tempo vai levar até que todos me esqueçam por completo e minha lembrança não traga nem ao menos uma alfinetada de dor ou mágoas. Eu não peço lágrimas. Peço apenas o perdão pelo meu egoísmo, causar dor à alguém nunca foi meu desejo. Mas eu estou morto e mortos não lamentam.

   O meu corpo bate no chão, o caminhão bate no meu corpo e passa por cima dele com suas rodas imensas e pesadas. "Eu estava certo", foi a primeira coisa que pensei enquanto olhava o céu e sentia a vida se esvaindo do meu ser, "eu não sinto dor". O céu estava alaranjado, o Sol se punha e minha vida estava se pondo em conjunto. Saldo o Sol pelo dueto e juntos saldamos o público. As cortinas estão fechando e pessoas começam a aparecer no espaço restante da minha visão. "Vocês estão estragando o meu momento", pensei. As cortinas se fecham, ninguém aplaude. Estou morto e mortos não querem glória, mortos não sentem dor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá, meu caro leitor. Faça um escritor carente e necessitado feliz, deixe seu comentário.