segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O TEMPO

O tempo passa,
O tempo não para.
O tempo se arrasta
E te arrasta com ele,
O tempo arrasta o momento.
O tempo não sacia,
O tempo come,
O tempo come o tempo ao seu lado.
Tenho fome de tempo,
Tenho fome do tempo com você.
O tempo preenche e esvazia,
O tempo enche de alegria que não vai durar.
O tempo passa,
O tempo conta
E a gente conta o tempo,
A gente contra o tempo.
Quanto tempo até a gente se ver?

sábado, 22 de fevereiro de 2014

SOBRE OS TRILHOS DO MUNDO

Eles rasgam suas roupas
E te põem em um terno.
Eles cortam seu cabelo
E te dão um penteado "apresentável".
Eles te limpam, lavam,
Só pra poder botar o perfume que os agrade.
Eles tiram suas dúvidas e porquês
E te tornam mais prático.
Eles jogam sua personalidade fora
E te tornam mais produtivo.
A filosofia do ser útil pra alguém,
Ser útil pra quem?
O mundo gira sobre os trilhos que o homem construiu,
E esses mesmos homens empregam a lei da produtividade.
Viva pra fazer e construir algo pra alguém,
Viva não por você, não pra você,
Viva pra ser quem eles querem que você seja.
Mais produtivo, mais rápido,
Mais eficiente.
Quem você é não importa,
Seus sonhos, suas personalidades,
Isso não vale nada quando você é o que você faz,
Você é o conjunto das suas aptidões...
Eles sugam a sua vida
Pra prolongar a deles.
Substituindo cada característica sua por mais um parafuso
Pra pôr nos trilhos onde o mundo gira.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

INF(ERNO)ÂNCIA

    Venho aqui, já aos meus 26 anos, perante à todos que queiram me julgar, à todos que me atiraram pedras no meu caminho à cadeia, me declarar culpado. Não pelos assassinatos, não. Por esse crime o juiz e o réu já me culparam, por esse crime toda a sociedade e a imprensa já me crucificou. Mas sou culpado por ser fraco, sim, pasmem, por ser fraco. Fraco perante às pressões dessa sociedade putrefata, fraco perante às humilhações dessa sociedade digna de pena, essa com a qual todos vocês convivem e já se acostumaram. Mas me perdoem, eu não pude ser forte como vocês.

    Venho desabafar aqui todo o sofrimento que passei por alguns anos da minha vida... Aquela época de ouro que trazem à vocês, seres humanos normais e sempre atarefados nas suas vidas rotineiras, tanta nostalgia. Aquela época que vocês chamam de infância, eu tomo a liberdade - pois a única liberdade que tenho na cadeia é a poética - de chamá-la de inferno.

    Vejam bem, algumas pessoas nascem com certos dons como a simpatia, um sorriso fácil ou até mesmo a falsidade para poder fingir algum dos dois. Eu não tive a sorte de ter nenhum desses dons, mas graças a Deus - vejam isso apenas como uma expressão, pois apesar dos bons esforços da minha mãe, jamais fui um homem devoto - nasci com o dom da observação. Enquanto todas as crianças estavam ocupadas prestando atenção às aulas, conversando com os colegas do lado ou olhando apaixonados para um(a) garoto(a) da sala, eu me ocupava observando-as. Observava seus jeitos, suas maneiras, seus vícios, tiques, expressões faciais... Eu observava tudo. Não observava apenas as pessoas, mas também o jeito como o risco do giz no quadro negro perdia a grossura com o uso, como a luz do Sol às quinze horas refletida na pequena janela ao meu lado direito fazia parecer como se eu estivesse banhado em luz, e até mesmo como os chicletes mastigados debaixo das carteiras endureciam com o tempo.

    Todo esse tempo de observação me fazia desatento às aulas e, com isso, minhas notas nunca foram muito dignas de serem admiradas por ninguém, o que me fez repetir algumas vezes ao longo do período escolar. Além das notas, meu passatempo de observar me tornava uma pessoa muito anti-social e - como diriam os garotos que me atormentavam através dos anos - esquisito. Jamais fugi às brincadeiras de mau gosto dos meus colegas de escola. Não importava quantas vezes eu repetisse, a turma seguinte herdaria da anterior a habilidade de se divertir às minhas custas com apelidos como "esquisitão" e brincadeiras como jogar coisas - principalmente comidas e bebidas - em mim. Ah, a infância - perdão, inferno. O inferno é belo e nostálgico, não?

    Quando cheguei ao último ano do período escolar, toda a humilhação havia feito de mim uma pessoa amargurada e cheia de ódio, porém extremamente controlada. Aguentei até aproximadamente metade do ano todas as brincadeiras de pessoas como a Raíssa, com seus cabelos lisos e loiros - ainda lembro do quanto eu ri ao vê-los vermelhos, embebidos em sangue - ou o João, sempre fora o que mais riu de mim e mais incentivou as outras pessoas à me atormentar - lembro também do último sorriso dele, jamais terminado graças à bala que entrou na sua boca e o matou. Sei que já pedi perdão no começo dessa confissão, mas venho aqui lembrá-los: perdão por não aguentar passar por essa linda época que vocês chamam de infância, perdão por ser fraco.

    Aproximadamente na metade do ano, eu simplesmente não suportei mais... Em uma das madrugadas que não conseguia dormir, tomado por lágrimas, eu fui ao escritório do meu falecido pai - como a maioria de vocês deve ter visto no noticiário ao me prenderem, não possuo pai desde os cinco anos, tomado por uma enfermidade. E ao chegar lá, fui direto à escrivaninha onde achei o que esperava encontrar, o revólver que pertencia à ele - o que descobri, depois de preso, ser um taurus modelo oito-três-oito, calibre trinta e oito. Sabia que o revólver tinha capacidade para oito balas, e minha sala possuía vinte e três alunos - como vocês podem lembrar nos noticiários. Peguei mais três cartuchos - o terceiro era um extra, eu não contava com acertar todos os tiros - e os guardei comigo.

    No dia seguinte, depois de todos os alunos estarem sentados em seus respectivos lugares, eu andei até a porta devagar com o revólver dentro do casaco e parei por um minuto de frente para a porta, de costas para a sala. Percebi que todos haviam acompanhado minha marcha até a porta, a marcha fúnebre deles. O professor me mandou voltar ao meu lugar com um tom de voz indicando rispidez e autoridade e quando me virei, vi o João apontar para mim e gritar "olha só o que o esquisitão está fazendo!" e abriu a boca gargalhando, o que levou à turma a começar a rir também. Pena que não durou muito, assim que o João abriu a boca e começou a rir, saquei a arma do casaco e meti-lhe uma bala na garganta. Por um breve segundo que pareceu uma eternidade, os risos cessaram e o silêncio permaneceu, breve, até ser substituído por gritos e pelo barulho de cadeiras se arrastando, pessoas correndo. Sorri e mirei no próximo, e no próximo, e no próximo, até acabarem as balas do revólver, então as substituí e recomecei, gargalhando histericamente enquanto matava todos os alunos da sala, deixando vivo apenas o professor, agachado contra a parede, assustado. Para me justificar: o professor apenas fazia seu trabalho e jamais havia me incomodado, não havia porquê condená-lo por apenas estar lá. Ao terminar meu trabalho, coloquei a arma na minha própria boca e atirei. Para a minha surpresa, nada aconteceu. Apertei o gatilho de novo, e de novo, e de novo, desesperadamente. Mas não haviam mais balas e aquele fora o último cartucho. Sou culpado também por me deixar levar pela adrenalina e pela emoção, por esquecer meu dom de observação e não contar as balas.

   O resto de tudo vocês já conhecem bem, os policiais chegaram e me encontraram ajoelhado ao chão, desesperado por ainda estar vivo, e meu professor - que depois testemunhou contra mim - ainda em estado de choque, agachado contra a parede. Descobri depois que a Raíssa e mais outros dois alunos haviam permanecido vivos apesar de tudo. Quando soube, me senti o ser mais tolo à caminhar sobre a Terra. Por me deixar pela emoção de atirar em cada um, não parei para pensar que algum deles ainda poderia estar vivo. Senti-me ridiculamente tolo por não verificar um por um, certificando-me se todos estavam completamente mortos. Mas relaxei depois, ao imaginar o trauma e a dor que seria continuar viver sendo qualquer um os três, seja a Raíssa com seus novos cabelos vermelhos - é como gosto de imaginá-la agora - ou qualquer um dos outros dois.

    Agora que vossas senhorias já estão familiarizadas com o meu passado posso terminar meu desabafo com minha declaração final de culpa... Senhores juízes dessa sociedade corrupta e declarada à morte, declaro-me culpado por não me adaptar, por não querer viver, por não aguentar a pressão ou a humilhação. Declaro-me culpado por ser fraco demais e não sobreviver intacto ao inferno que vossas senhorias chamam abertamente de infância.